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Privilégio branco

ECOA

26/11/2019 04h00

Privilégio branco é o nome dado às vantagens sistêmicas, simbólicas e materiais que as pessoas brancas têm em nossa sociedade em relação a pessoas não brancas. Isso significa que, ainda que nas mesmas circunstâncias sociais, políticas ou econômicas, pessoas brancas são mais beneficiadas que pessoas não brancas e esses benefícios vão se acumulando com o tempo. O privilégio branco está ligado diretamente à branquitude e ao racismo estrutural e cotidiano presente em nossa sociedade.

Seguem alguns exemplos de fatos corriqueiros, mas também chocantes embora normalizados, que ocorreram na minha família no decorrer de 4 gerações. Acredito que essas situações sejam representativas da história de tantas outras famílias brasileiras, nas quais fica muito fácil perceber a diferença de tratamento que pessoas negras e brancas receberam e ainda recebem em nossa sociedade. 

Minha bisavó, que era negra e nasceu alguns anos após o fim da escravidão, passou a vida trabalhando como empregada doméstica e nunca conseguiu realizar seu sonho de se tornar professora. Queria que seus filhos nascessem brancos para que tivessem mais oportunidades na vida. Acho isso muito triste, mas não a culpo por querer que seus filhos não sofressem tanto quanto ela. 

Isso de fato aconteceu. Tenho plena consciência de que a vida da minha avó, da minha mãe e minha seriam totalmente diferentes se fôssemos negras. Teríamos tido muito menos acesso a recursos e oportunidades, de geração em geração, a começar pela minha avó.  

Pelo simples fato de ter nascido branca, minha avó teve oportunidade de estudar, ao contrário de suas amigas negras, no orfanato onde cresceram. Apenas as meninas brancas eram enviadas para a escola, enquanto as negras nem sequer aprendiam a ler. 

Na geração seguinte, minha mãe me contou sobre a primeira vez que percebeu que o racismo existia. Ela tinha 7 anos e havia uma festa no clube da cidade onde morava, no interior de São Paulo. Mesmo não sendo sócias, as famílias da cidade costumavam participar das festas. Neste dia, seu primo de 16 anos, negro, que estava de visita, foi proibido de entrar no clube, enquanto seus irmãos da mesma idade eram bem-vindos. A única diferença entre eles era a cor da pele. 

Minha tia, irmã da minha mãe, trabalhou a vida toda num banco estadual. Um dia conversei com ela sobre o fato de, nos bancos, ainda hoje, quase não haver funcionários negros (exceto seguranças e pessoas que fazem a limpeza). Então ela me contou que, por lei, qualquer pessoa podia prestar concurso, porém, na prática, as provas das pessoas negras não chegavam nem a ser avaliadas, pois a primeira seleção era feita com base na foto do candidato e seus testes eram descartados. Fiquei chocada ouvindo isso. E minha tia não teria tido a oportunidade de trabalhar e se aposentar neste banco se fosse negra. 

Na minha infância estudei em períodos diferentes numa escola estadual e numa particular no mesmo bairro na cidade de São Paulo. Na escola pública a maioria das crianças era negra e com menos recursos financeiros. Já na escola particular não havia negros e a condição econômica de todos era muito melhor. Isso não é fruto do acaso. Está diretamente relacionado ao privilégio que as famílias brancas foram recebendo e acumulando com o tempo.

Mesmo levando em conta o esforço pessoal de cada um, sei que a ascensão social da minha família se deu em grande parte pelo "branqueamento" pelo qual ela passou. 

Mas, para falar a verdade, tenho certa dificuldade em identificar situações específicas nas quais eu tive vantagens no decorrer da minha vida pelo simples fato de ser branca. Mesmo as situações descritas acima não estiveram sempre no meu campo de atenção e consciência. É como se eu sofresse de uma certa cegueira quando se trata de perceber essas coisas.

Essa cegueira é característica comum do privilégio. Como estou acostumada com ele, a tendência é eu não perceber que o privilégio existe e que outras pessoas são tratadas de maneira diferente e não têm as mesmas vantagens que eu. Como não tenho o mesmo repertório de experiências de pessoas com menos privilégios, corro o risco de acreditar que estamos vivendo a mesma realidade, com as mesmas oportunidades, quando isso não é verdade. 

Então o problema aumenta quando acreditamos que as pessoas negras ou pardas estão tendo a mesma experiência que as brancas e não somos capazes de enxergar e entender as dificuldades impostas pelo sistema de acordo com a cor da pele. Às vezes a desigualdade é tão intensa e está em tantos detalhes da vida do dia a dia que chega a ser uma opressão esmagadora para quem a sofre mas é muitas vezes invisível para quem não a vive.

É justamente essa cegueira do privilégio que precisa ser superada por nós, brancos, para conseguirmos enxergar as desigualdades decorrentes do sistema racista em que vivemos e contribuir para transformá-lo.

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Sobre a autora

Psicóloga, com graduação em artes plásticas e especialização em didática, Sandra Caselato é uma exploradora dos processos psicológicos e das relações humanas, com especial interesse na transformação de conflitos e no fortalecimento da cultura de paz. Atua com desenvolvimento humano há mais de 20 anos, aprofundando-se em práticas que favorecem o diálogo, a transformação pessoal e social por meio da conexão humana.

Sobre o blog

Como você se relaciona consigo mesma(o), com as pessoas a sua volta e com o mundo? Como você lida com os conflitos que se apresentam em sua vida e ao seu redor? Sandra Caselato traz reflexões sobre como viver uma vida mais conectada com os próprios valores, enxergar com empatia além das aparências e construir espaços seguros para conversas necessárias, criando o mundo em que queremos viver.


Sandra Caselato