Sandra Caselato http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br Sandra Caselato, formada em artes plásticas e psicologia, é uma exploradora dos processos psicológicos e das relações humanas. Tue, 17 Mar 2020 12:45:36 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Carta do coronavírus para os seres humanos http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/03/17/carta-do-coronavirus-para-os-seres-humanos/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/03/17/carta-do-coronavirus-para-os-seres-humanos/#respond Tue, 17 Mar 2020 07:00:49 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=143

Hoje abri minha timeline e vi uma postagem que me tocou muito, uma carta imaginada da Covid-19 (coronavírus) para os seres humanos*. Nela, dizia que após muito tentar ser escutado e não conseguir, decidiu então forçar a barra e exigir: “Pare. Apenas pare.” A carta nos convida a pensar o quanto somos parte do sistema maior que é a natureza e o sistema ecológico global, e o quanto precisamos voltar a nos conectar com ele de uma forma mais sustentável.

Há muito tempo, nosso estilo de vida enquanto comunidade global nos mostra que precisamos desacelerar. O consumo desenfreado de recursos naturais, o desmatamento, a poluição e tudo que contribui para a emergência climática que vivemos, vêm colocando cada vez mais em risco à vida na Terra.

Agora, com a pandemia do coronavírus não temos outra escolha a não ser desacelerar, pois a maior arma para combatê-lo é reduzir a velocidade com a qual ele se propaga.

Negar o problema ou entrar em pânico não ajuda. O que precisamos no momento é cuidar da nossa saúde emocional e seguir as medidas coletivas de prevenção.

De maneira sincronizada, 16 de março é o Dia Nacional de Conscientização sobre as Mudanças Climáticas, e podemos aproveitar o momento, como nos pede a Covid-19, para refletir sobre nossas ações e impactos no meio ambiente e nas vidas uns dos outros.

O coronavírus tem nos dado a oportunidade de reconhecer a importância de pensar no bem estar coletivo e não apenas individual, a importância dos serviços públicos de saúde que atendam a todos, não apenas alguns, e do valor do apoio da comunidade e da conexão humana.

Também nos convida a refletir sobre a insustentabilidade de nossos sistemas socioeconômicos e a necessidade urgente de uma mudança de foco que tenha como valor central não o lucro, mas a vida em todas as suas formas, diminuindo intencionalmente os impactos ecológicos e reconhecendo as vantagens de sistemas descentralizados e regionais.

É momento de nos afastarmos fisicamente e nos conscientizarmos sobre o quanto estamos conectados e precisamos cuidar uns dos outros, já que somos interdependentes: seres humanos, animais, plantas, o planeta em sua totalidade.

* Segue a Carta imaginada da Covid-19 para os seres humanos
(Autor desconhecido. Tradução do inglês para o português: Sandra Caselato)

Pare. Simplesmente pare.
Não é mais um pedido. É uma ordem.
Nós iremos ajudar-lhe.
Vamos parar o carrossel supersônico de alta velocidade
Vamos parar
os aviões,
os trens,
as escolas,
os shoppings,
as reuniões,
a frenética e furiosa onda de ilusões e “obrigações” que o impedem de ouvir o pulsar de nossa batida de coração compartilhada,
a maneira como respiramos juntos, em uníssono.
Nossa obrigação é de uns para com os outros,
como sempre foi, mesmo que você tenha esquecido.
Interromperemos a transmissão cacofônica interminável de divisões e distrações,
para lhe trazer esta notícia de última hora:
Nós não estamos bem.
Nenhum de nós; todos nós estamos sofrendo.
No ano passado, as tempestades de fogo que queimaram os pulmões da terra não foram suficientes para que você parasse.
Nem os tufões na África, China, Japão.
Nem as altas ondas de calor no Japão e na Índia.
Você não tem escutado.
É difícil ouvir quando você está tão ocupado o tempo todo, tentando manter os confortos e conveniências que sustentam suas vidas.
Mas a fundação está cedendo,
se curvando sob o peso de suas vontades e desejos.
Nós iremos ajudá-lo.
Vamos trazer tempestades de fogo para o seu corpo,
traremos febre ao seu corpo,
traremos queimaduras abrasadoras e inundaremos seus pulmões
para que você possa ouvir:
Nós não estamos bem.
Apesar do que você possa pensar ou sentir, nós não somos o inimigo.
Nós somos o Mensageiro. Somos aliados. Nós somos uma força que traz o equilíbrio.
Então pedimos a você: pare, fique quieto, escute,
vá além de suas preocupações individuais e considere as preocupações de todos;
reconheça sua ignorância, encontre sua humildade, abandone suas mentes pensantes e mergulhe em seu coração.
Olhe para o céu, agora riscado com menos aviões. Veja-o, perceba como ele está: claro, enfumaçado, poluído, chuvoso? O quanto você precisa que ele esteja saudável para que você também possa estar saudável?
Olhe para uma árvore e a veja, perceba como ela está: como a saúde dela contribui para a saúde do céu, do ar que você precisa respirar para estar saudável?
Visite um rio e o veja, perceba como ele está: claro, limpo, escuro, poluído? O quanto você precisa que ele esteja saudável para que você também possa estar saudável? Como a saúde do rio contribui para a saúde da árvore, que contribui para a saúde do céu, para que você também possa estar saudável?
Muitos têm medo agora.
Não demonize seu medo e também não o deixe lhe governar. Em vez disso, deixe que ele fale com você – em sua quietude – ouça sua sabedoria.
O que o medo pode estar lhe dizendo sobre o que está em questão, em risco, além das ameaças de transtornos e doenças pessoais?
Da mesma forma que a saúde de uma árvore, um rio ou o céu lhe mostra a qualidade da sua própria saúde, o que a qualidade da sua saúde pode estar lhe dizendo sobre a saúde dos rios, das árvores, do céu e de todos nós que compartilhamos esse planeta com você?
Pare.
Observe se você está resistindo.
Observe o que você está resistindo.
Pergunte por que.
Pare. Simplesmente pare.
Fique quieto. 
Escute.
Nos pergunte o que podemos lhe ensinar sobre doenças e curas, sobre o que é preciso ser feito para que tudo fique bem.
Nós iremos lhe ajudar, se você ouvir.

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A catástrofe de Fukushima e o Grande Terremoto do Leste do Japão http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/03/10/a-catastrofe-de-fukushima-e-o-grande-terremoto-do-leste-do-japao/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/03/10/a-catastrofe-de-fukushima-e-o-grande-terremoto-do-leste-do-japao/#respond Tue, 10 Mar 2020 07:00:44 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=138

Tóquio, 11 de março de 2011.

O chão tremeu como já havia tremido tantas outras vezes. Um leve tremor, perceptível apenas porque as coisas balançavam um pouquinho, como ocorria quase toda semana.

Morava no Japão há 1 ano e meio e já tinha me acostumado com esses pequenos tremores. Mas agora a vibração não parava, como normalmente acontecia.

Os livros começaram a ‘caminhar’ na estante até cair, coisas na cozinha chacoalhando. Olhamos um para o outro, eu e meu marido: “acho que desta vez sim, precisamos sair da casa”.

Sensação de urgência e ao mesmo tempo uma inesperada tranquilidade, um tipo de amortecimento. Saímos do apartamento antigo de dois andares.

Lá fora, surpresa: bicicletas estacionadas tombavam, o poste balançava como se fosse de borracha. Surreal.

Várias pessoas do lado de fora, uma moça chorando. Nos aproximamos de um grupo e uma senhora japonesa de uns 60 anos, visivelmente abalada, disse que nunca tinha vivido um tremor como esse.

Difícil ficar em pé… muita gente sentada no chão, que não parava de tremer.

E uma calma inexplicada em mim.

Alto falantes instruindo o que devíamos fazer: ir até o ‘bakayama’ – um gramado aberto dentro da universidade, área de segurança em caso de terremoto.

Voltamos para o apartamento para buscar algumas coisas. Uma parede trincada, uma vidraça quebrada. Coisas caídas no chão. Pegamos rapidamente casacos, mochila com documentos, água e algo para comer.
Sensação de irrealidade, como se estivesse num sonho ou assistindo um filme.

Uma certa suspensão de sentimentos e sensações, mas ao mesmo tempo uma consciência mais aguçada do meu próprio corpo, que estava alerta, pronto para agir, qualquer que fosse a necessidade.

Andamos por uma trilha em meio às árvores, em direção ao gramado. O chão parecia um tapete sendo chacoalhado – ondas subindo e descendo, que davam certa tontura. Difícil manter o equilíbrio ao caminhar. Medo de andar entre as árvores, que pareciam poder tombar a qualquer momento.
Chegando ao ‘bakayama’ nos sentamos no chão, como tantas outras pessoas, que formavam pequenos grupos. Algumas pessoas choravam desesperadas.

De repente minha calma desapareceu e uma certa ansiedade e aflição tomaram conta de mim. Imagens me vinham à mente, como aquelas de filmes americanos de catástrofes: o chão se abrindo numa cratera, escuridão no céu, fogo e chuva ao mesmo tempo, pessoas sendo sugadas pelo buraco que se abria na terra, desespero, morte, frio… minha mente podia seguir por este caminho angustiante e aterrador com imagens do fim do mundo – ou não…

Respirei fundo e decidi conscientemente ir por outro caminho… Posso escolher para direcionar minha mente.

Me conectei com a terra, com meu corpo sentado sobre a grama, minha respiração, o ar frio entrando pelas minhas narinas. Senti a terra se movendo sob mim, como se respirasse junto comigo, para cima e para baixo, para cima e para baixo, pra cima e para baixo. Minhas mãos abertas, conectadas com o chão, enraizando… enraizando…

Uma imagem me veio à mente: estava sentada na barriga de um enorme gigante, que dorme respirando tranquilo… Neste momento me senti tranquila também.

Esta imagem e a sensação de uma calma quase inabalável me acompanharam nos dias que se seguiram, e pude realizar inúmeros atendimentos psicológicos emergenciais via telefone a pessoas que precisavam de apoio.

Sempre que meus pensamentos mostravam qualquer sinal de querer voltar àquelas imagens catastróficas, logo me conectava novamente com a respiração tranquila do enorme gigante adormecido, e isso me acalmava.

O Grande Terremoto do Leste do Japão em 11 de março de 2011 matou mais de 16 mil pessoas e causou o acidente nuclear da usina de Fukushima, com vazamento de material radioativo para o mar, a terra e o ar, com graves consequências ecológicas de magnitude ainda desconhecida.

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Ter filhos não é brincadeira http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/03/03/ter-filhos-nao-e-brincadeira/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/03/03/ter-filhos-nao-e-brincadeira/#respond Tue, 03 Mar 2020 07:00:03 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=128 De alguma forma eu sempre tive essa consciência. Pensava comigo mesma que só teria filhos quando me sentisse preparada e quando minha vida estivesse estabilizada. Isso nunca aconteceu. 

 Vejo os desafios de amigos e conhecidos na educação de seus filhos e penso: ainda bem que não tive filhos. Às vezes testemunho o amor entre pais/mães e filhos em momentos emocionantes e penso: que pena que não tive filhos, quem sabe ainda tenha. 

 Como dizia Vinicius de Moraes: “filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos, como sabê-los?”  

 Enquanto isso, fico pensando sobre o que considero ser uma boa infância e que qualidade de vida, de relações e de educação acho importantes para uma criança. Vejo algumas famílias que me inspiram e outras que me causam desespero. 

 Outro dia, na piscina do prédio onde moro, estavam o pai, o filho de aproximadamente 6 anos e a filha de uns 11 anos. Eram 3 pessoas brincando, conversando, cantando, se divertindo, com tranquilidade e harmonia. Depois de uns 40 minutos eles se foram e chegou uma nova família: a mãe, o pai, o filho e o primo, ambos de aproximadamente 6 ou 7 anos. Logo ao chegar o menino colocou as toalhas numa cadeira e foi correndo em direção à piscina. A mãe gritou irritada: “por que vc colocou minha toalha lá longe?! Traz pra cá!”. O filho voltou, pegou a toalha e entregou para a mãe. Perguntou receoso: posso entrar na piscina? A mãe respondeu, sem olhar para ele: pode. Os meninos entraram na água enquanto os adultos conversavam sentados à sombra. De tempos em tempos a mãe gritava para o filho não fazer alguma coisa: “não pula na água!”, “sai da escada”, etc. O pai não se dirigiu às crianças em nenhum momento. O primo parecia estar tranquilo, querendo se divertir, brincar. O filho parecia tenso, preocupado, olhando para a mãe a todo momento, como que esperando o próximo grito. 

 Foi muito chocante ver o contraste da relação dos adultos com as crianças nas duas famílias naquele momento. Enquanto em um caso parecia haver respeito mútuo, atenção e conexão entre as pessoas, no segundo todos pareciam desconectados de si mesmos e entre si. A mãe parecia irritada e brava, o pai desligado, o filho com medo e o primo meio alheio a tudo isso, querendo apenas brincar. 

 Presenciar essas cenas me faz pensar o quanto a qualidade de presença e conexão dos adultos consigo mesmos e com as crianças “dá o tom” da vida em família e do desenvolvimento de uma criança. Mas reconheço o quanto é desafiador manter o equilíbrio emocional e a estabilidade no tipo de sociedade em que vivemos, devido às preocupações com trabalho, estabilidade financeira, falta de tempo, falta de apoio de uma comunidade mais ampla, pouca conexão com a natureza, etc.

 Fico muito inspirada com a forma como um outro casal de amigos se relaciona, a qualidade de presença e interação que vivem com o filho de 4 anos. Nunca vi o menino fazer “escândalo” ou chorar perdendo o controle. Diversas vezes presenciei ele agarrando a roupa da mãe ou do pai, se pendurando ou cutucando, às vezes de maneira desagradável para eles. Em todas as vezes vi eles se voltarem para o filho, se abaixarem para ficar na mesma altura, olhando em seus olhos e, sempre num tom calmo, perguntarem por exemplo: “filho, você está querendo a minha atenção?”. Em resposta o menino dizia que sim, se acalmando imediatamente e mudando completamente seu comportamento. Às vezes os pais seguiam conversando com o filho, às vezes diziam para ele que estavam ocupados conversando comigo e pediam para ele esperar. Nas duas situações o filho se tranquilizava. Nunca vi os pais dando bronca, gritando ou brigando com o filho. Costumam conversar com ele tranquilamente e em resposta o filho fala tranquilamente também.

Percebo também que em suas conversas está muito presente a expressão de sentimentos, que parece que vai sendo naturalmente aprendida e reproduzida pelo filho. Assim ele vai desenvolvendo sua inteligência emocional e capacidade de expressar seus sentimentos e inquirir empaticamente sobre os sentimentos dos pais. 

 Comentei com eles que admiro muito a forma como eles se relacionam com o filho e eles me disseram que é um desafio diário, mais ou menos como uma meditação constante em que buscam manter o próprio equilíbrio para manter um ambiente emocionalmente estável e conseguir lidar com o desequilibro do filho, quando este aparece. Também me confidenciaram que passaram por um período muito difícil, quando o filho era menor e a mãe ficava com ele 24 horas por dia, com muito pouco apoio do pai, que viajava bastante, e sem nenhuma rede de apoio. “Quase fiquei louca”, me disse ela. 

Percebo o quanto é desafiador manter a consciência em busca de oferecer ao filho uma qualidade de relação, conexão e apoio que possa ajudá-lo a crescer e se desenvolver plenamente, protegido de traumas em seus anos formativos. Principalmente devido ao sistema cultural e socioeconômico em que vivemos, onde a mãe muitas vezes precisa trabalhar fora desde cedo ou se sente dividida entre sua realização profissional e a consciência da importância da conexão da criança com a mãe em seus primeiros anos de vida.

 Uma amiga uma vez me disse: “para ter filhos você não pode pensar, se você parar para pensar você não tem”. Acho que tenho pensado muito… 

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Carnaval, Justiça Social, Bolsonaro e o Papa http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/25/carnaval-justica-social-bolsonaro-e-o-papa/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/25/carnaval-justica-social-bolsonaro-e-o-papa/#respond Tue, 25 Feb 2020 12:11:52 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=131 Este ano o Dia Mundial da Justiça Social (20 de fevereiro) coincidiu com o início do Carnaval no Brasil, que é um dos países mais desiguais do mundo, com milhões de pessoas na pobreza. 

Há vários anos as escolas de samba trazem nas letras de seus sambas enredo e nas suas diversas expressões artísticas temas que dão voz a grupos marginalizados e trazem uma visão crítica sobre as injustiças históricas e atuais de nosso país. Valorizam personalidades e momentos históricos que contribuíram para minimizar as desigualdades e diferenças socioeconômicas, de direitos, de gênero e raça, etc. Trazem também visibilidade e questionamento sobre outros momentos e figuras históricas cujas ações aumentam as desigualdades, a pobreza, a exclusão e o preconceito.

A Justiça Social está diretamente relacionada aos nossos sistemas econômicos e políticos, e os processos históricos pelos quais se formaram, não apenas no Brasil mas no mundo todo. Esses sistemas contribuem com a desigualdade pois cuidam mais de uma minoria de pessoas do que da grande maioria. Sua normalização e subsequente invisibilização do quanto são injustos e desumanos é um dos maiores obstáculos no caminho da criação de novos sistemas que possam cuidar de todas as pessoas com equidade. 

A marginalização e o silenciamento das vozes oprimidas, das experiências das populações que foram privadas de direitos ao longo de gerações, resulta numa narrativa histórica dominante que normaliza os sistemas atuais e nos priva de uma percepção mais realista de sua verdadeira natureza. Ao nos conscientizarmos das graves consequências destes sistemas econômico e político, enfrentamos um dilema pessoal e coletivo entre continuarmos a permiti-los ou transformá-los.

Erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades são princípios da nossa Constituição. Entretanto, se observarmos a história do Brasil, seu mito fundador ou sonho original é o da colonização extrativista, de submissão das pessoas e da natureza em prol da riqueza de poucos, os colonizadores. É um país que se funda na desigualdade social e continua da mesma forma de lá pra cá. 

A Anistia Internacional divulgou um relatório esta semana (27 de fevereiro) mostrando que o ano de 2019 foi marcado por retrocessos para os direitos humanos no Brasil e em 23 outros países das Américas. “Desigualdade, corrupção, violência, degradação ambiental, impunidade e enfraquecimento das instituições continuaram sendo uma realidade comum nas Américas, resultando em violações diárias dos direitos humanos para milhões de pessoas”, diz a introdução do relatório. No caso do Brasil, a Anistia afirma que o presidente Bolsonaro e outras autoridades mantiveram um discurso abertamente contrário aos direitos humanos e que isso foi traduzido em medidas administrativas e legislativas. Leia mais sobre o relatório aqui: 

A desigualdade social não é algo separado da economia e da política. Thomas Picketty, premiado economista francês, afirma em seu livro “O Capital no século 21” que a crescente concentração de riqueza é sintoma inextricável da sua causa raiz, o sistema capitalista. Isso quer dizer que podemos combater o quanto quisermos a desigualdade econômica, mas enquanto não mudarmos a sua causa, o capitalismo, ela continuará acontecendo. 

A Oxfam vem publicando suas pesquisas sobre concentração de riqueza no mundo, que tem aumentado rapidamente ano após ano e nesse momento aponta que os 6 mais ricos do mundo detém uma fortuna equivalente aos 50% mais pobres da população mundial, um exemplo concreto da gravidade da situação.

Isso não quer dizer que a solução seria necessariamente apenas o comunismo ou o socialismo. Outros modelos de sistemas econômicos podem ser e já estão sendo criados. 

O economista chileno Manfred Max-Neef por exemplo, desenvolveu um modelo econômico centrado no ser humano, no ambiente e na vida como um todo, denominado “Desenvolvimento à Escala Humana”, fundamentado na teoria de Necessidades Humanas Universais. Há também protótipos como o do Butão, país que substituiu o PIB (Produto Interno Bruto) como referência da saúde econômica no país, pelo índice FIB (Felicidade Interna Bruta) que foca no bem estar individual, social e ambiental. 

Outra iniciativa inspiradora é o encontro Economia de Francisco, que acontecerá mês que vem na cidade de Assis, na Itália e vai reunir mais de 2 mil jovens de 120 países. O encontro está sendo organizado pelo Papa Francisco com o auxílio do economista americano Joseph Stiglitz e do indiano Amartya Sen, ambos vencedores do Prêmio Nobel. O objetivo é repensar, debater e buscar novos rumos para a economia mundial, hoje dedicada de modo quase exclusivo aos interesses de maximização dos lucros de empresas e de poucos indivíduos, de modo a direcioná-la para a proteção da maioria e do meio ambiente. 

Justiça Social de verdade somente pode ser vivida numa sociedade que integra as narrativas e experiências de todos que nela vivem e que se sensibiliza ao compreender que os sistemas políticos e econômicos adotados não são neutros, mas fruto e continuidade de opressões do passado, a ponto de querer proativamente adotar novos sistemas que cuidem de todas as pessoas.

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O Jogo das Soluções http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/18/o-jogo-das-solucoes/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/18/o-jogo-das-solucoes/#respond Tue, 18 Feb 2020 07:00:16 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=124 D. Maria* contou que certa vez estava tentando resolver um conflito entre seus dois netos, de 4 e 6 anos de idade, quando teve a ideia de aplicar os princípios da CNV (Comunicação Não-Violenta), que vinha estudando há 5 anos. 

Já tinha se frustrado muitas vezes anteriormente quando os netos brigavam e ela se esquecia totalmente da CNV, voltando ao antigo paradigma, muito familiar, em que assumia o papel de juíza e dizia quem estava certo e quem estava errado, impondo uma solução para a briga. 

Mas desta vez, antes mesmo de chegar na casa dos netos, prometeu a si mesma que ficaria consciente nos momentos de conflito e encontraria soluções colaborativas que demonstrassem que as necessidades de todos importam e podem ser cuidadas enquanto se tenta encontrar uma solução que funcione para todos.

E assim aconteceu. Logo que os pais das crianças saíram de casa, para passar um fim de semana fora, Joana pegou de dentro do baú de brinquedos um papel em formato de coração. Ao ver o coração, João o tirou de sua mão e disse: “esse coração é meu, fui eu que fiz!”. Joana imediatamente respondeu: “mas eu peguei primeiro!” E assim começou o conflito. 

Só que desta vez, do nada, D. Maria teve a inspiração de dizer: “Ei, eu acho que nós temos um dilema aqui. Essa é uma grande oportunidade de jogarmos o Jogo das Soluções. Vocês sabem jogar o Jogo das Soluções?” – ela sabia que a palavra “jogo” chamaria a atenção dos netos. 

Ambos olharam para ela com uma expressão de curiosidade e surpresa. “Não”, responderam.

“Bem, o jogo funciona assim” – disse D. Maria – “Sempre que há um dilema, um conflito ou uma briga, o objetivo do jogo é usar nossa imaginação para inventar uma solução que funcione para todos. Cada um tem sua vez de jogar e quando um de vocês inventar uma solução que funcione para os dois então nós ganhamos o jogo! É muito divertido! Vocês querem jogar?”

“Sim!” – disseram com entusiasmo.

“Legal!” – disse D. Maria – “Joana, você é a mais nova, então você começa. Pense bem e me avise quando você tiver uma solução que você acha que vai funcionar para vocês dois.”

Joana pensou talvez por 1 minuto e disse com entusiasmo e alegria: “Eu fico com o coração porque eu achei primeiro”.

“Tá bom” – disse D. Maria – “Sua solução é que, como você achou primeiro o coração, você fica com ele. É isso?” 

“Sim” – disse Joana.

“Muito bem, então agora a próxima coisa que precisamos fazer é verificar com João e ver se essa solução funciona para ele. Lembre-se que a solução tem que funcionar para todos”. Virando-se para João, D. Maria disse: “João, a solução que a sua irmã propôs é que ela fica com o coração porque ela achou primeiro. Isso fica bom pra você?” 

“Não!” – exclamou João com o rosto franzido. 

Virando-se para Joana, D. Maria disse: “Joana, talvez você tenha outra rodada, então continue pensando. Sua proposta não funcionou para o João, então agora é a vez do João”. Quando D. Maria se voltou para o João, viu que ele estava segurando o coração na frente do seu rosto, prestes a rasgá-lo ao meio. “Espere João” – disse D. Maria – “eu imagino que a sua solução é cortar o coração no meio, dar metade para a Joana e ficar com a outra metade. É essa sua solução?” 

“Sim!” – disse João.

“Certo. Lembre que precisamos checar com a Joana para ver se funciona para ela. A solução precisa ser boa para vocês dois.” Virando-se para Joana, D. Maria disse: “A solução do João é rasgar o coração ao meio, dar metade pra você e ficar com a outra metade. Isso funciona para você?”

Joana pensou por alguns instantes e, em seguida, para surpresa de D. Maria, disse com um grande sorriso no rosto: “Sim, funciona para mim.”

“Sim!!” – gritou D. Maria – “ganhamos o jogo das Soluções!” 

Durante o fim de semana, D. Maria e os netos tiveram muitas oportunidades de jogar o Jogo das Soluções novamente. João e Joana muitas vezes começaram o jogo por conta própria, quando surgia um conflito, sem qualquer ajuda da avó. 

O mais surpreendente foi quando a mãe das crianças, três semanas depois, agradeceu muito a D. Maria pelo Jogo das Soluções, dizendo que os filhos estavam resolvendo sozinhos seus próprios conflitos, sem chamar os pais para mediar!

*Os nomes nesta história são fictícios. 

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A Comunicação Não-Violenta e seu criador http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/11/a-comunicacao-nao-violenta-e-seu-criador/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/11/a-comunicacao-nao-violenta-e-seu-criador/#respond Tue, 11 Feb 2020 07:00:23 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=119 Há 5 anos morreu, aos 80 anos, o psicólogo americano Marshall Rosenberg, criador da Comunicação Não-Violenta (CNV). 

Ele dedicou sua vida a investigar as causas da violência e como reduzi-la. Desenvolveu a CNV com o intuito de apoiar a transformação de conflitos entre as pessoas e na sociedade, e disseminar habilidades necessárias para a construção da paz e um mundo mais justo. 

Inspirou-se em grandes ícones como Martin Luther King Jr. e Gandhi, que mostraram na prática como a resistência não-violenta e a desobediência civil podem transformar realidades sociais opressoras, como a luta pelos Direitos Civis dos negros nos Estados Unidos e a independência da Índia do império Britânico, por exemplo.   

O trabalho de Marshall teve grande influência da Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, um dos precursores da Psicologia Humanista, de quem foi aluno. 

Também se inspirou na filosofia de educação de Paulo Freire, visando que prática da CNV possa alcançar mais pessoas de maneira democrática, participativa e contextual, incentivando ações autônomas e construtivas para afirmar e atender suas necessidades.   

Segundo Marshall, a violência entre as pessoas e a violência social estão relacionadas e surgem a partir de um modo específico de pensar. Para ele, o pensamento que leva os pais a punir os filhos é o mesmo tipo de pensamento que leva os líderes mundiais a punir nações inteiras. 

Segundo alguns teóricos e pesquisadores, essa visão de mundo teve início cerca de 8 mil anos atrás, quando do surgimento de um mito sobre a criação do mundo no qual o planeta e as pessoas são criadas a partir da destruição de uma deusa feminina do mal por um deus masculino virtuoso. 

Este mito traz uma imagem trágica de que os seres humanos são basicamente criados a partir de uma energia maligna e, portanto, precisam ser controlados e vigiados por seres mais elevados. Algumas poucas pessoas consideradas especiais, superiores e mais próximas dos deuses devem, então, controlar e vigiar os demais. Assim surge a ideia de culpa e crítica, punição e recompensa, e de um deus superior que avalia a todos. Quando as pessoas são consideradas boas elas são recompensadas indo para um lugar chamado céu e quando são julgadas más, são punidas e vão para o inferno. 

Este tipo de pensamento prevaleceu em muitas civilizações ao longo dos séculos e hoje se encontra em nossa subjetividade e nos diversos âmbitos de nossas sociedades ocidentais: nas famílias, escolas, empresas e demais instituições e sistemas que constituem nossa cultura. 

Os pais acreditam que são superiores aos filhos, os castigam quando julgam que são maus e os recompensam quando os consideram bonzinhos. O mesmo ocorre nas escolas, nas empresas e em nível nacional: os superiores controlam e vigiam os inferiores e têm o direito de julgar e culpar, além de dar ou não recompensas e sanções. 

O conceito de justiça neste paradigma é de uma justiça retributiva, punitiva. O tipo de linguagem também é uma linguagem que favorece o julgamento e culpabilização. 

Neste paradigma, somos treinados culturalmente num modo de pensar específico, que procura identificar quem está certo e quem está errado, quem é bom e quem é mau. E é esse o tipo de pensamento que justifica a punição e a violência entre as pessoas e na sociedade. Quem ‘é mau’ e quem ‘está errado’ merece castigo e quem ‘é bom’ e ‘está certo’ merce recompensa.

Já as sociedades e culturas cujo mito fundante e cujo padrão de pensamento e de linguagem não se baseiam neste paradigma tendem a apresentar menos violência.  

Marshall percebeu, então, que existe uma maneira de nos relacionarmos que é totalmente diferente desta forma baseada em julgamentos, punição e recompensa: quando as pessoas conseguem se conectar com o que está vivo uma na outra, tendem a querer contribuir com o bem estar mútuo. 

Assim ele criou a Comunicação Não-Violenta (CNV), com o intuito de apoiar as pessoas a se conectarem de uma forma mais profunda e verdadeira, a partir de um outro paradigma. Segundo ele, a melhor maneira de fazer isso é nos conscientizarmos dos sentimentos e necessidades nossos e dos outros. Já que todos os seres humanos têm as mesmas necessidades e sentimentos, quando nos conectamos nesse nível conseguimos enxergar nossa unicidade além de nossas diferenças. Porém, como em nossa cultura e socialização desde crianças não estamos acostumados a nos conectar com nossos próprios sentimentos e necessidades nem das outras pessoas, a CNV vem nos apoiar neste aprendizado e prática. 

Desde o final da década de 60, quando começou a ser desenvolvida, a Comunicação Não-Violenta vem influenciando movimentos sociais, apoiando processos de mediação de conflitos e justiça restaurativa, sendo praticada em empresas, escolas, famílias, grupos diversos, processos terapêuticos e transformação de conflitos internacionais. 

A CNV está presente hoje em mais de 65 países e continua e se espalhar pelo mundo, contribuindo para o desenvolvimento da consciência humana. No Brasil a CNV vem crescendo cada vez mais, sendo vivenciada e partilhada por pessoas que experimentam na prática seus benefícios, nas diversas áreas de suas vidas.  

De acordo com Al Weckert, autor de uma biografia de Marshall, embora ele nunca tenha recebido o Prêmio Nobel da Paz, deveria ser considerado “uma das grandes personalidades do século 20″. 

Para saber mais sobre a CNV acesse o site da Sinergia Comunicativa e o site do Centro Internacional de Comunicação Não-Violenta.

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Ser a mudança que quero ver no mundo basta? http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/04/ser-a-mudanca-que-quero-ver-no-mundo-basta/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/02/04/ser-a-mudanca-que-quero-ver-no-mundo-basta/#respond Tue, 04 Feb 2020 07:00:42 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=115 A mudança social só acontece se houver mudança pessoal. Mas apenas a mudança pessoal não é suficiente para que haja mudança social. 

No cenário atual, em que enfrentamos o aquecimento global, o consumo desenfreado de recursos naturais não renováveis, a degradação de solos agricultáveis, o aumento do desmatamento, o ressurgimento de pensamentos xenófobos nacionalistas e fascistas pelo mundo, a concentração cada vez maior de riqueza, o aumento da pobreza e a banalização de tudo isso – torna-se cada vez mais urgente a conscientização sobre a importância de pensarmos coletivamente transformações estruturais, sociais e culturais com novos padrões de consumo, partilha justa e cuidado com o planeta.

Mudanças nos padrões estruturais e sócio-culturais só acontecem quando há transformações em comportamentos individuais. Porém, a mudança pessoal isolada não é suficiente para que haja mudanças sociais ou culturais. 

Veja o exemplo da minha avó: considero que ela estava à frente de seu tempo. Teve cinco filhos, duas meninas e três meninos. Todos ajudavam na limpeza e organização da casa, aprenderam a cozinhar, costurar, fazer tricô, crochê – tanto as meninas quanto os meninos! Uma raridade na década de 40, 50! Não fazia questão que seus filhos a chamassem de senhora – dizia que respeito é diferente de obrigação ou medo. Valorizava o diálogo, a conexão com os filhos e não a simples obediência e submissão. Ela reciclava o lixo, fazia compostagem e era vegetariana. Seus filhos cresceram sem comer carne, todos com muita saúde. Era ativa em sua comunidade, ajudava quem tinha menos recursos, mesmo ela própria não tendo tantos. 

Admiro muito a coerência com a qual ela buscava viver a vida, transformando em ações concretas aquilo em que acreditava, mesmo indo contra a corrente do que a maioria das pessoas ao seu redor fazia. Isso não devia ser muito fácil – nossa família era considerada “meio esquisita”, recebida com certo estranhamento por ser “diferente” e, infelizmente, as ações da minha avó não tiveram uma influência muito significativa num âmbito social mais amplo. 

Mesmo alguns de seus filhos deixaram de ser vegetarianos e de se preocupar com uma alimentação saudável quando cresceram, os homens depois que casaram nunca mais cuidaram da casa ou fizeram crochê e não sei o quanto a educação que minha avó deu a seus filhos influenciou a educação dos netos e bisnetos. Tenho certeza que suas ações influenciaram de uma forma ou de outra as gerações seguintes da família. Mas penso que toda uma vida não é suficiente para que haja uma transformação social se não há um número considerável de outras pessoas caminhando junto, na mesma direção. 

Sem dúvida, nossas ações pessoais são importantes para a construção da coletividade. Vejo muito valor na frase de Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”. A soma do que cada um faz individualmente constitui a forma como nos organizamos socialmente, como interagimos e nos relacionamos, como estabelecemos nossas instituições sociais e como nossa cultura se forma. 

Porém, apenas a mudança de um indivíduo não é suficiente para que haja mudança social. “Uma andorinha só não faz verão”, como diz o ditado. Para que haja mudanças significativas e impactantes é necessário existir uma massa crítica, uma quantidade mínima de pessoas para que uma nova dinâmica social possa se dar em cadeia de modo auto-sustentável.

Por isso considero essencial o engajamento, a influência ativa e a organização de ações coletivas em relação às questões públicas, sociais e ambientais que afetam a todos nós. Importante conhecermos nosso poder pessoal, capacidade e possibilidade de influenciar e nos engajarmos coletivamente expandindo nosso círculo de influência com ações estratégicas e planejadas. 

Uma andorinha sozinha pode influenciar muitas outras e juntas fazer um belo verão! 

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Afinal, o que é privilégio? http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/01/28/afinal-o-que-e-privilegio/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/01/28/afinal-o-que-e-privilegio/#respond Tue, 28 Jan 2020 07:00:22 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=109 Acho curioso como atualmente a palavra privilégio tem causado certa comoção e ganhado conotação de xingamento para muitas pessoas. Acredito que isso acontece por um entendimento equivocado do significado da palavra.

Gostei muito da explicação de um amigo que trabalha com TI (Tecnologia da Informação). Ele disse que em sua área profissional, privilégio é o nome dado à permissão que apenas alguns usuários têm, num sistema de computador, para executar determinadas ações ou acessar determinadas áreas. Por exemplo, criar ou alterar um arquivo. Simples assim. Se todos têm acesso ou controle sobre algo, então não há privilégio. Privilégio existe somente em relação a outros não terem as mesmas possibilidades ou vantagens.

Alguns privilégios existem de acordo com a função que a pessoa ocupa em uma instituição e se misturam com a responsabilidade do cargo. Por exemplo o acesso à chave do portão de uma escola, que normalmente é restrito a apenas algumas pessoas.

Outros privilégios são adquiridos por habilidades desenvolvidas, capacidade ou esforço pessoal, como por exemplo o treinamento físico, estudar para passar no vestibular ou no concurso para um emprego, etc.

Ao mesmo tempo, há privilégios que não dependem de nossas habilidades pessoais, mas são dados a priori, como as condições físicas e de saúde com as quais nascemos ou nossa idade, por exemplo, que pode significar mais ou menos privilégios em certos contextos no decorrer da vida.

Além disso, há privilégios que existem por causa da forma como nossa sociedade se estrutura e das relações de poder nela existentes. De acordo com as condições nas quais a pessoa nasceu, ela terá mais ou menos acesso a certas coisas, como até mesmo ter ou não suas necessidades básicas na infância atendidas e acesso à escola, por exemplo.

Muitos privilégios são uma combinação desses vários tipos citados anteriormente em diferentes gradações, já que os sistemas sociais e culturais influenciam as condições socioeconômicas de diferentes grupos e consequentemente facilitam ou dificultam o desenvolvimento das habilidades individuais. Quem teve na infância acesso a boas escolas, por exemplo, e não precisou trabalhar para apoiar no sustento de sua família desde cedo, terá mais chances de passar no vestibular e conseguir um bom emprego do quem quem nasceu em condições socioeconômicas menos favorecidas.

Além disso, como o privilégio é sempre contextual e relativo, todos nós individualmente temos certos privilégios em relação a outras pessoas em determinadas circunstâncias ou áreas de nossas vidas.

Transpondo da experiência individual para um âmbito sistêmico ou estrutural mais amplo, podemos verificar que certos grupos com características específicas têm mais privilégios do que outros devido à forma como nossa sociedade se estrutura culturalmente e economicamente.

Por exemplo, podemos verificar por meio de dados estatísticos, que um homem tem certas vantagens sistêmicas ou estruturais em relação a uma mulher em nossa sociedade: os homens ganham mais que as mulheres exercendo a mesma função, mesmo que em muitos casos elas tenham maior escolarização (veja pesquisas do IBGE e da CATHO.

Porém se o homem for negro, ele tem menos privilégios em certos aspectos em relação a uma mulher branca. Além de receber menos, ele está sujeito a discriminação racial no próprio trabalho e em sua vida em geral, por exemplo. Segundo dados do Ipea, “homens brancos têm os melhores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e mulheres negras.”

A mulher negra está na base da pirâmide, abaixo das mulheres brancas e dos homens brancos e negros em todos os aspectos. Dados sobre a violência contra a mulher, por exemplo, mostram que as mulheres negras sofrem mais violência que as brancas – o feminicídio contra mulheres brancas diminuiu enquanto contra mulheres negras aumentou (Veja Atlas da Violência 2019).

Uma pessoa transgênera, que não se identifica com o gênero que lhe foi designado socialmente ao nascer, sofre discriminação (o Brasil é o país que lidera o ranking mundial de assassinatos de transexuais, segundo a ONG Transgender Europe (TGEu). Porém uma pessoa transexual com bastante dinheiro, tem mais vantagens em nossa sociedade do que outras pessoas com poucos recursos financeiros. 

Resumindo: o privilégio é sempre relativo a características e situações individuais específicas e todos nós temos mais ou menos privilégios em determinados aspectos de nossas vidas, dependendo de nossas habilidades, função e condições de nascimento.

Como mencionei acima, nossa sociedade se estrutura em sistemas culturais e socioeconômicos que tendem a privilegiar mais determinados grupos em detrimento de outros, que acumulam, então, mais recursos e poder para desenvolver suas habilidades pessoais e agir no mundo, concentrando mais recursos, poder, privilégios e acentuando desigualdades.

Da mesma forma que os privilégios se acumulam, as desvantagens (ou desprivilégios) também se sobrepõem. A pesquisadora Kimberlé Crenshaw criou o termo ‘interseccionalidade’ para explicar como identidades sociais sobrepostas ou interseccionadas, particularmente identidades minoritárias, se relacionam com sistemas e estruturas de opressão, dominação ou discriminação. Por exemplo, o racismo, o sexismo, o classismo, o capacitismo, a homofobia e a transfobia e intolerâncias baseadas em crenças não agem independentemente uns dos outros, mas interagem em níveis múltiplos e simultâneos se sobrepondo uns aos outros.

Essas vantagens e desvantagens não são definidas e decididas por cada um de nós individualmente, mas pelas estruturas e sistemas socioeconômicos e culturais, e são muitas vezes difíceis de enxergar, principalmente quando acumulamos mais privilégios. Quanto mais privilégios acumulamos, menos tendemos a percebê-los e somos tomados por uma certa “cegueira do privilégio”.

Para enxergar o que não vemos podemos começar olhando em volta com atenção buscando perceber como em nosso dia a dia os privilégios se manifestam nos ambientes onde circulamos, nas instituições, nas estruturas sociais, na nossa cultura e na nossa vida e subjetividade. Podemos desenvolver a habilidade de perceber onde estamos contribuindo com nossa maneira de pensar e nossas ações (ou falta de ação) que acabam perpetuando essas desigualdades e discriminações, para que possamos caminhar para uma sociedade mais justa para todos.

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Roberto Alvim e a “banalidade do mal” http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/01/21/roberto-alvim-e-a-banalidade-do-mal/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/01/21/roberto-alvim-e-a-banalidade-do-mal/#respond Tue, 21 Jan 2020 07:00:46 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=104 Na última semana, o tema nazismo veio à tona novamente na mídia depois que o então Secretário da Cultura, Roberto Alvim, fez um pronunciamento semelhante ao de Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista.

Lendo sobre o assunto, me surgiu a seguinte pergunta: que tipo de pensamento ou entendimento de mundo e de ser humano permite que atrocidades como as que aconteceram durante o nazismo sejam possíveis?

Considero essa pergunta essencial, pois ela possibilita visibilizar um padrão de pensamento que nem sempre é reconhecível enquanto ainda é incipiente, apenas uma semente que, se “adubada”, se transformará numa árvore indesejada, como foi o nazismo.

Esse questionamento é uma forma de colocar em prática a lição que Hannah Arendt nos deixou ao escrever “Eichmann em Jerusalém” e cunhar o termo “banalidade do mal”. Ela nos convida a sermos mais vigilantes em nossa reflexão crítica e diminuirmos a possibilidade de, sem perceber, reproduzirmos e participarmos de atrocidades. Eichmann era um burocrata que enviou milhões de judeus para os campos de extermínio nazistas, mas não se considerava responsável por sua morte, pois, como funcionário exemplar, estava apenas executando seu trabalho.

O próprio Alvim parece ter dificuldade em fazer esta reflexão crítica, pois diz ter “profundo repúdio a qualquer regime totalitário” e declara sua “absoluta repugnância ao regime nazista”. Entretanto, não vê problema no conteúdo e no tipo de pensamento presente em seu pronunciamento que chamou de “infeliz coincidência retórica”, e diz que “não há nada de errado com a frase” semelhante ao discurso nazista. Ou seja, ele vê problema na árvore e em seus frutos, mas não vê problema na semente. Não percebe que o tipo de pensamento que defende é a semente da árvore que diz repudiar.

A maneira como nossa sociedade se organiza não acontece ao acaso. Ela está diretamente relacionada a formas e padrões de pensamento que moldam nosso entendimento do mundo e definem a forma como nos relacionamos entre nós e com o meio onde vivemos.

Certos modelos e tipos de pensamento estão na raiz de como entendemos o mundo e o ser humano, e na maneira como nos organizamos cultural e socialmente em instituições e sistemas, na busca de atender nossas necessidades humanas de subsistência, interdependência, propósito, proteção, conexão etc. Por exemplo, na atualidade dividimos geograficamente o planeta em nações/estado (países), onde cada grupo ou região se organiza em um determinado sistema econômico, político, jurídico, educacional, com um tipo específico de alimentação, agricultura, forma de moradia, organização familiar, saúde, cuidado com crianças e idosos, modelos de transporte, um certo consenso ou senso comum sobre o que é considerado bom ou mau, normal ou anormal, adequado ou inadequado, aceitável ou inaceitável etc.

Convido então a refletirmos sobre duas formas de olhar e pensar sobre o mundo: uma inclusiva e outra excludente. O pensamento inclusivo aceita e valoriza a diversidade e o diálogo, buscando acolher e cuidar de todos. Já o pensamento excludente prega a ideia de que existe uma maneira correta e única de entender o mundo e a vida, e a impõe sobre os outros. É a ditadura do pensamento único, que no decorrer da história já matou muita gente.
Aí reside o perigo: a base ou a semente do pensamento que permite que uma sociedade se organize de maneira a cometer atrocidades, como as que o regime nazista cometeu, é o pensamento dicotômico, binário e maniqueísta, que compreende o bem e o mal de modo absoluto.

Esse pensamento se fundamenta na a ideia binária de separação, na desumanização da imagem de um OUTRO que, diferente de NÓS, é essencialmente mau, errado, degenerado, repugnante, uma aberração, perigoso, monstruoso, irrecuperável etc.

Esse tipo de pensamento é a porta de entrada para a violência que passa a ser justificada já que esse OUTRO, que encarna o mal, “precisa” ser combatido e até mesmo eliminado.

Essa ideia de um OUTRO que é “diferente” e foge da “norma” se manifesta hoje em racismo, machismo, homofobia, transfobia, preconceito religioso e de classe social, e em tantas outras formas de discriminação. Se manifesta também na ideia de que existe uma “cultura verdadeira” ou boa, uma arte melhor e outra pior. E assim vai crescendo a semente de um pensamento moralista, maniqueísta e excludente, que muitas vezes resulta em regimes impositivos, totalitários e assassinos, como foi o nazismo.

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Ouvir: uma arte http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/01/14/ouvir-uma-arte/ http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/2020/01/14/ouvir-uma-arte/#respond Tue, 14 Jan 2020 07:00:15 +0000 http://sandracaselato.blogosfera.uol.com.br/?p=101

Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana.” (Carl G. Jung)

Ao final de um primeiro atendimento de psicoterapia:

– Como você está se sentindo agora?

– Estou bem melhor. Estou mais tranquila. Gostei muito porque você conversou comigo de verdade, não ficou só em silêncio me ouvindo. Você me perguntou quando não estava claro o que eu estava dizendo e aí as coisas ficaram mais claras para mim também. A única outra vez que eu tinha ido a um psicólogo foi muito diferente e foi horrível. Eu cheguei lá e falei, falei, falei e, enquanto eu falava, eu percebia que o que eu estava dizendo não fazia sentido. Eu estava perdida na minha própria confusão e acho que o psicólogo também não estava entendendo nada do que eu falava, mas ele ficava só me olhando. Então eu continuei falando, falando, não conseguia parar de falar e parecia que tudo ia ficando cada vez mais confuso. Quando eu finalmente consegui parar de falar, angustiada, na expectativa de ouvir o que ele tinha a dizer, ele falou: “Seu tempo acabou”. Fui embora chorando e nunca mais voltei. Ainda bem que decidi tentar de novo agora porque foi totalmente diferente. Estou muito aliviada. Não estou mais me sentindo sozinha.

Talvez uma das coisas mais importantes que aprendi atendendo como psicóloga está relacionada à pesquisa sobre a “Relação de Ajuda”, realizada por Carl Rogers, psicólogo americano precursor da Psicologia Humanista e criador da Abordagem Centrada na Pessoa.

Nesta pesquisa, Rogers buscou identificar que ações, posturas e atitudes resultam de fato em ajuda, onde as pessoas se sentem apoiadas ou têm a experiência de que a interação as ajuda lidar com seus desafios, qualquer que seja a natureza da relação: entre psicólogo e cliente, médico e paciente, professor e aluno, pais e filhos, colegas de trabalho, entre amigos etc. Rogers chegou a três atitudes facilitadoras para uma “Relação de Ajuda”: empatia, congruência e aceitação positiva incondicional.

Parece um paradoxo, mas a conclusão que ele chegou – e que eu tenho experimentado com sucesso – é que o que mais “ajuda” uma pessoa não é “tentar ajudá-la”, mas apenas estar presente, junto com ela num movimento de empatia e aceitação incondicional em relação ao que quer que esteja acontecendo internamente com a pessoa, acompanhando o que está “vivo” para ela a cada momento, sem tentar resolver, modificar, transformar, sugerir ou consertar.

Ao mesmo tempo, é importante que eu seja congruente comigo mesma, sincera e autêntica sobre o que ocorre internamente em mim em relação à pessoa, expressando isso para ela quando relevante. Ser “eu mesma” ajuda a estabelecer uma conexão humana verdadeira e honesta, que vai além de rótulos ou títulos, como terapeuta, pai, mãe, professor, aluno, chefe
etc.

Quando eu estou realmente presente com a pessoa, aceitando-a completamente, dou espaço para que as transformações possam acontecer naturalmente, no ritmo dela, sem tentar dirigir ou forçar transformações. É como observar o desabrochar de uma flor. Eu posso estar ali presente, admirando e oferecendo condições que favorecem seu desabrochar (água, luz etc.), mas se eu tento ajudar a flor a se abrir mexendo em suas pétalas, acabo interferindo no processo e posso até destrui-la.

Esta qualidade de presença e atitude a que Rogers se refere, significa um respeito e uma confiança profunda na capacidade da pessoa encontrar seu próprio caminho, sabendo que a melhor maneira de apoiá-la é estar junto com ela, sendo eu mesma com honestidade e acompanhando o que está vivo para ela a cada momento. É uma confiança plena no que Rogers chamou de “Tendência à auto atualização” – a tendência inata de todo ser vivo a se mover em direção a encontrar formas de suprir suas necessidades.

Da mesma forma que uma planta continuamente se volta para a luz ou estende suas raízes em busca de água, nós, seres humanos, também somos movidos a buscar atender nossas necessidades, sejam de sobrevivência, bem-estar, segurança, amor, confiança, aceitação, participação, pertencimento, comunidade, dignidade, respeito, entre tantas outras.

Essa nossa capacidade natural de buscar maneiras de atender nossas próprias necessidades é fortalecida quando estamos em ambientes e em relações que nos oferecem essas condições facilitadoras: aceitação incondicional, empatia e congruência. De acordo com Rogers, esses são os elementos necessários para desabrochar este nosso mecanismo inato de auto atualização.

É o que tento estabelecer em todas as minhas relações. Nem sempre é fácil, principalmente com as pessoas mais próximas, mas acredito que foi o que começou a acontecer neste primeiro atendimento que citei no início do texto. Ao estar presente com essas qualidades facilitadoras, é como se eu estivesse favorecendo as condições necessárias para este desabrochar da pessoa, que continuou nas sessões seguintes.

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