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Sandra Caselato

Comunicação não-violenta: uma linguagem da vida

ECOA

22/10/2019 09h27

Há mais de 10 anos eu e meu companheiro de vida e de trabalho temos estudado e vivenciado a comunicação não-violenta (CNV) em nossas vidas. Também temos atuado com ela nas mais diversas áreas: ONGs, empresas, escolas, movimentos sociais, governo, lideranças comunitárias, grupos muito diversos aqui no Brasil e no exterior. Já atuamos em mais de dez países e participamos, todo ano, desde 2011, de um projeto que ocorre na Palestina e reúne num retiro de CNV de nove dias mais de 100 judeus, palestinos e internacionais. Durante este tempo temos visto transformações pessoais e coletivas muito inspiradoras nestes diversos locais e contextos.

 Apesar do subtítulo do livro em português "técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais", a CNV não é um mera ferramenta ou um conjunto de técnicas. Na realidade, o subtítulo original do livro é "uma linguagem da vida". Muito diferente. E o entendimento desta diferença é fundamental na compreensão e na vivência da CNV. 

 A CNV nos apoia a fazer algo que já sabemos mas que desaprendemos, pois nossa cultura em geral não valoriza: como acessar em mim mesma e nas outras pessoas a essência do que é importante na vida de cada um de nós e encontrar formas de "tornar a vida mais maravilhosa", como dizia Marshall Rosenberg, seu criador.

 Marshall foi um psicólogo americano, que desenvolveu a CNV para apoiar as pessoas a se conectarem com elas mesmas e umas com as outras de maneira mais autêntica e empática, e a cocriarem estratégias e soluções que buscam atender as necessidades de todos. É uma prática que ajuda pessoas e grupos a tornar a vida melhor para todos, a transformar as realidades onde vivemos em sistemas mais inclusivos e horizontais onde as necessidades de todos são consideradas. Isso inclui relações familiares e escolares, ambientes de trabalho, grupos diversos e nosso contexto político-social em geral. 

A meu ver, a CNV é uma forma de ser, estar e entender o mundo; um paradigma que ajuda a enxergar o ser humano, eu mesma e os outros de uma maneira mais profunda e conectada com a vida. Este estado de conexão influencia minha relação comigo mesma e com os outros, minha atuação no mundo e inclusive a forma com que me comunico. Mas a CNV não é uma maneira de falar, não é uma técnica de comunicação ou a uma sequência de passos ditando como devo me expressar. 

 Esta confusão surge quando, a fim de tornar o conhecimento mais acessível, Marshall o organizou e sistematizou de uma maneira simples e clara para facilitar sua prática. Estruturou um modelo ou processo para servir de base ao aprendizado e à integração dos princípios fundamentais da CNV em nossas vidas. Muitas pessoas que fizeram um curso introdutório ou leram o livro "Comunicação Não-Violenta" conhecem esse modelo inicial organizado em torno de quatro passos ou componentes. Porém a CNV não se resume a isso. 

 Toda esta estruturação pode ser uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que resume com clareza os pontos essenciais deste novo paradigma que a CNV propõe, e pode ser uma ferramenta poderosa para nos ajudar a por em prática e integrar o conhecimento, ela pode nos aprisionar se acreditamos que ela é o conhecimento em si.

 Existe um risco em olhar para estes quatro passos ou componentes e concluir que a CNV é uma técnica, um método, uma forma de falar ou uma fórmula a ser aplicada nas situações e na interação com os outros para que eles façam o que queremos. Este entendimento afasta sua prática do propósito real com o qual a CNV foi criada: apoiar as pessoas a se conectarem verdadeira e profundamente consigo mesmas e com os outros, com empatia e autenticidade, e buscar soluções que atendam as necessidades de todos. 

 A redução da compreensão e prática da CNV apenas a uma das suas formas possíveis restringe a dinâmica de um processo que é vivo e pode ter seu impacto muito mais ampliado se estiver pautado pelo seu real propósito de conexão. Isso requer uma mudança de olhar, de qualidade de presença, de intenção para criar conexão. A partir deste propósito guia, a vivência da CNV pode tomar diversas formas, inclusive os quatro passos, entre várias outras.

 Essa mudança de paradigma acontece gradualmente e requer prática constante, pois é algo que vai contra a corrente da nossa socialização e cultura. Envolve transformar nossa compreensão de nós mesmos, dos outros e das situações, bem como nossas formas habituais de pensar e agir. Requer um olhar diferente para o mundo, que quanto mais eu pratico, mais ele se transforma em minha maneira de ser e estar no mundo.

Essa estrutura formalizada em quatro componentes é apenas um apoio, que se torna dispensável uma vez que integramos a essência do aprendizado. É como a terceira rodinha da bicicleta que utilizamos quando estamos aprendendo a pedalar. Ela nos ajuda a encontrar e manter o equilíbrio, que vamos aprendendo a acessar a cada vez que subimos na bicicleta, até que não precisamos mais da rodinha. 

 

Sobre a autora

Psicóloga, com graduação em artes plásticas e especialização em didática, Sandra Caselato é uma exploradora dos processos psicológicos e das relações humanas, com especial interesse na transformação de conflitos e no fortalecimento da cultura de paz. Atua com desenvolvimento humano há mais de 20 anos, aprofundando-se em práticas que favorecem o diálogo, a transformação pessoal e social por meio da conexão humana.

Sobre o blog

Como você se relaciona consigo mesma(o), com as pessoas a sua volta e com o mundo? Como você lida com os conflitos que se apresentam em sua vida e ao seu redor? Sandra Caselato traz reflexões sobre como viver uma vida mais conectada com os próprios valores, enxergar com empatia além das aparências e construir espaços seguros para conversas necessárias, criando o mundo em que queremos viver.